quinta-feira, 24 de março de 2011

Tsunami no Rio Madeira


Pela BR-364, a 137 quilômetros a sudoeste de Porto Velho, a principal obra no país do PAC – Programa de Aceleração do Desenvolvimento – debate-se numa espiral de violência, sob acusações de trabalho escravo e espancamentos de trabalhadores pelos “cachimbos” (seguranças, motoristas) a soldo da Enesa Engenharia S/A, responsável pela Usina Hidrelétrica do Jirau. A empresa construtora, Camargo Corrêa, insiste em dizer que não há qualquer reivindicação trabalhista e que foi uma briga entre duas pessoas que desencadeou os atos de vandalismo indiscriminado que à tardinha do último dia 15 resultaram na destruição dos alojamentos da margem direita do rio Madeira, de cem ônibus, quinze automóveis, refeitório, área de lazer, farmácia e caixas eletrônicos do canteiro de obras. Dois dias depois a tentativa de retomar a rotina com os operários das casas da margem esquerda resultou em novo incêndio provocado pelos homens escondidos nas matas em volta e na suspensão total dos trabalhos tanto no Jirau quanto em Santo Antônio, a outra Usina do complexo energético destinado a fornecer 6.450 megawatts (metade da capacidade de Itaipu) à região sudeste do Brasil.

Trabalhadores sem exigências de qualificação foram contratados por intermediários (“gatos”) pelo interior do norte e nordeste. Alguns vieram de Serra Pelada e de outros garimpos no Pará e vizinhanças. Haitianos em busca de sobrevivência chegados ao Brasil pela fronteira de Tabatinga e do Acre, acabaram “transferidos” para Rondônia. Quando recebem pagamento, o caminho de muitos é o povoado de Jacy-Paraná à procura de mulheres e de álcool. Quem chegar um pouco alto no acampamento apanha. Para o deputado estadual por Rondônia, Hermínio Coelho, “este pavio está aceso há muito tempo. Maus tratos, proibição de saída do canteiro, pagamento diferente do combinado, violência e falta de segurança já ocasionaram diversas mortes e são as causas que fizeram com que o Jirau se tornasse um inferno”.

O começo dessa história nos remete ao boom do ciclo da borracha amazônica, quando seringueiros brasileiros invadiram o território boliviano forçando um movimento de secessão da então Província do Acre. Na guerra subseqüente, as conseqüências foram, mais uma vez, desastrosas para a Bolívia, obrigada a ceder – pelo Tratado de Petrópolis de 1903 – 191 mil km2 de território do Acre ao Brasil que em compensação pagou-lhe 2,5 milhões de libras esterlinas (logo consumidas pelos governantes de então) e no rio Madeira cedeu duas áreas de 5.200 km2, ademais do compromisso de construir uma estrada de ferro sobre suas corredeiras. Sete anos depois fracassou o próprio sonho de sustentação econômica pela borracha, com a entrada no mercado do produto mais competitivo da Malásia, Ceilão e Ilha de Java. A Madeira-Mamoré Railway, construída de 1907 a 1912 pelo magnata norte-americano Percival Farquhar para ligar Porto Velho a Guajará-Mirim, ficou conhecida como a "Ferrovia do Diabo", devido à morte de 6 mil trabalhadores que caíram vitimados por naufrágios, ataques de índios, picadas, malária, febre amarela, tifo e beribéri. Acumulando prejuízos, a estrada de ferro terminou desativada. À época andou por lá o marechal Cândido Rondon para implantar os postes e os postos telegráficos (igualmente sucateados pelo tempo) que uniriam a Amazônia ao Brasil. A floresta abundante de então, descrita por Roquette Pinto em seu livro “Rondônia” de 1917, transformou-se na poeira trazida pelo desmatamento.

Jirau e Santo Antonio tiveram de ser bancadas pelo presidente Lula e por Dilma Roussef, então ministra da Casa Civil, que queriam licenças de liberação mais rápidas, motivando a saída de Marina Silva do Ministério do Meio Ambiente. As compensações sociais, que agora estão na base da revolta, são alardeadas pelo Consórcio Energia Sustentável do Brasil como sendo “um conjunto de ações destinadas a contribuir decisivamente para o desenvolvimento local e regional visando o aumento da empregabilidade da população, estimulando atuais e novos negócios, potencializando o aumento de renda e a dinamização da economia”. O palavreado complicado continua no programa governamental Território Madeira-Mamoré a cargo de 13 Ministérios que em 2010 implantou na região salas de recursos multifuncionais, além de distribuir bolsas-família e promover o etnodesenvolvimento (sic) em terras indígenas.

O Estadão informa que 14 pessoas já foram detidas. A Enesa não discute: colocou os operários num ônibus e alojou-os, em condições precárias, no ginásio do Sesi e nas boites Nautilus, Caipirão e Forasteiro de Porto Velho, distribuindo passagens só de ida para quem quiser voltar às cidades de origem. Imagina retomar as obras com gente nova, mas se os problemas não forem solucionados, logo as revoltas retornarão. Ninguém sabe se e quando haverá outro tsunami como o que arrasou Miyagi no Japão, mas o tsunami de Jirau no rio Madeira tem causas conhecidas e sua repetição, felizmente, pode ser prevenida.

Vitor Gomes Pinto
Escritor. Analista internacional
 

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